OS DIÁRIOS DE PESQUISA COMO DISPOSITIVO PARA NARRAR A EXPERIÊNCIA QUE SE PASSA ENTRE NÓS: UM CONTORNO METODOLÓGICO POSSÍVEL FORJADO NA INCIAÇÃO CIENTIFICA.

OS DIÁRIOS DE PESQUISA COMO DISPOSITIVO PARA NARRAR A EXPERIÊNCIA QUE SE PASSA ENTRE NÓS: UM CONTORNO METODOLÓGICO POSSÍVEL FORJADO NA INCIAÇÃO CIENTIFICA.

 

Sara Busquet – UERJ/FFP[1]

sarabusquet@gmail.com

Anelice Ribetto – UERJ/FFP[2]

anelatina@gmail.com

 

Este ensaio expõe uma pesquisa que a modo de um relato experimental objetiva apresentar uma produção de pensamento sobre um contorno metodológico possível para quem problematiza a experiência educativa no cotidiano escolar: o diário de pesquisa. Efeito da prática cartográfica produzida nos encontros entre uma bolsista de iniciação cientifica ,um coletivo de pesquisa e uma pessoa com surdocegueira que habita uma escola pública de Niterói, o diário emerge como força expressiva  para dar a ver e enunciar aquilo que emerge como experiência neste cotidiano escolar e assim dar língua aos afetos que por esse território experiencial passam. Desta forma, o texto apresentado é uma composição entre a escrita diaristica da pesquisadora/coletivo de pesquisa e alguns interlocutores que emergem de leituras do próprio campo de análise. Foi um trabalho apresentado no XI Seminário Internacional As Redes de Conhecimentos e as Tecnologias (UERJ, RJ, junho de 2017) e no VIII Encuentro Iberoamericano de Colectivos y Redes de maestros que hacen investigación e innovación desde su escuela y comunidad (Morelia, México, julho de 2017).

 1. Primeiros encontros para produzir este contorno metodológico.

 

Penso, converso e componho como se tece esta pesquisa diarística… Quando me encontrei com essa metodologia? Afinal, o que é, ou que entendo (conversando com autores) por diário de pesquisa?

(Diário de pesquisa, 29 de junho de 2016)

 

Em 2014, Sara Busquet começou a participar como bolsista de Iniciação à Docência, do Subprojeto de Pedagogia da Faculdade de Formação de Professores do Projeto PIBID/CAPES/UERJ e Anelice Ribetto integrou esse mesmo projeto como coordenadora, em conjunto com a professora Rosimeri de Oliveira Dias.

Permaneci no Pibid[3] (Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência) por dois anos. Esse Subprojeto funcionava na época em parceria com duas escolas, Colégio Estadual Conselheiro Macedo Soares (no Barreto, em Niterói) e CIEP Municipalizado 411 Dr. Armando Leão Ferreira (no Engenho Pequeno, em São Gonçalo), colocando em análise as micropolíticas do cotidiano da escola básica e da formação de professores.

Durante esses dois anos, participei de dois coletivos de trabalho e estudo no CEC Macedo Soares: a Oficina de Informática e o Conexão Macedo. O trabalho aconteciana escola, entre bolsistas e os sujeitos da escola, experimentávamos e problematizávamos os efeitos dos modos representacionais na escola e na vida:

 

Penso com o texto de Orlandi (2002) que conversamos

hoje no grupo de estudos…

Uma escolha, um gesto, um fazer…nunca são somente aquilo que se apresenta. Existem as dobras, as redobras, aquilo que se vê, que se toca e aquilo que não se vê ou não se pode tocar. Em um campo de tensões…

Conexão Macedo é nosso projeto… Experimentar a coletividade não porque é preciso ter domínio disso para sobreviver no mercado de trabalho, mas sim porque vivemos no coletivo, assim é que se faz a vida, o outro em nós. Não porque precisamos criar corpos dóceis que precisam viver em sociedade, mas sim como um meio pelo qual se dá visibilidade ao que é potente nas relações entre NÓS…

(Diário de pesquisa, 26 de agosto de 2015)

 

Foi durante minha permanência no Subprojeto Pibid de Pedagogia na FFP que conheci o método da cartografia e o diário de campo como dispositivo de análise dos movimentos que me atravessavam na escola, na minha formação, na minha vida. Também foi lá que frequentei grupos de estudos onde tínhamos como eixo de análise a noção deformação inventiva de professores, o conceito de cartografia como método de pesquisa e as políticas e práticas da diferença entre escola básica, universidade e a vida. Esses conceitos reverberam na pesquisa monográfica que vem sido composta que, dando expressão a uma cartografia, se tece como diário de pesquisa.

 

Às vezes os versos não vêm quando estamos sentados à mesa para escrever ou quando estamos com um lápis na mão. Muitas vezes eles emergem de um momento qualquer, em uma situação qualquer e pulsam em minha mente querendo sair, querendo eternizar-se em uma folha de papel qualquer ou em um lugar qualquer que possa ficar. Deve ser por isso que eles estão espalhados por mim ou no meu diário ou nas “páginas” do meu celular.

(Diário de pesquisa, 22 de junho de 2015)

 

O método utilizado para o processo de escrita, pesquisa e elaboração da monografia que está em andamento tem sido o da cartografia.Segundo Kastrup (2009), a cartografia tem como finalidade desenhar a rede de forças à qual o objetivo ou fenômeno em questão se encontra conectado. Para isso é preciso que o cartógrafo se deixe levar, se conecte, se permita envolver por esse coletivo de forças “Como cartógrafos, nos aproximamos do campo como estrangeiros visitantes de um território que não habitamos. O território vai sendo explorado por olhares, escutas, pela sensibilidade aos odores, gostos e ritmos” (p. 61).  Por meio deste método cartografo os atravessamentos, as tensões e as linhas pelas quais se passa a minha pesquisa. Através do dispositivo de um diário de pesquisa registro o que e acontece no campo de forças e afetos no decorrer do processo da monografia:

 

Seria possível transportar o sensível para o papel?

(Diário de pesquisa, 25 de agosto de 2015)

 

            A pergunta que escrevo acima, me fiz em 2015… Ela reverbera em mim desde então… Me surgiu durante uma aula de Estágio Supervisionado I com a professora Regina de Jesus na FFP/UERJ. Conversávamos sobre o registro em diários de pesquisa daquilo que nos acontece no cotidiano, e naquela situação, como dispositivo que nos permitiria pensar o estágio e nossa formação como docentes.

 

Para a pesquisa cartográfica são feitos relatos regulares, após as visitas e as atividades, que reúnem tanto informações objetivas quanto impressões que emergem no encontro com o campo. Os relatos contêm informações precisas – o dia da atividade, qual foi ela, quem estava presente, quem era responsável, comportando também uma descrição mais ou menos detalhada – e contêm também impressões e informações menos nítidas, que vêm a ser precisadas e explicitadas posteriormente. Esses relatos não se baseiam em opiniões, interpretações ou análises objetivas, mas buscam, sobretudo, captar e descrever aquilo que se dá no plano intensivo das forças e dos afetos. (KASTRUP, 2009, p. 70)

 2. Os diários de pesquisa

 

Aqui inicia meu diário de pesquisa…

sua escrita… início de uma monografia diariada ou diarística

que se compõe na escrita das experiências e que

tem nesse movimento uma expressão de vida.

Um diário.

(Início do diário de monografia)

 

Diariando…

 

Sendo tarefa do cartógrafo dar língua para afetos que pedem passagem, dele se espera basicamente que esteja mergulhado nas intensidades de seu tempo e que, atento às linguagens que encontra, devore as que lhe parecerem elementos possíveis para a composição das cartografias que se fazem necessárias. O cartógrafo é antes de tudo um antropófago (…)  Para isso, o cartógrafo absorve matérias de qualquer procedência. não tem o menor racismo de freqüência, linguagem ou estilo. Tudo o que der língua para os movimentos do desejo, tudo o que servir para cunhar matéria de expressão e criar sentido, para ele é bem-vindo. (ROLNIK, 1989, p.1)

 

Como podemosregistrar aquilo que nos acontece? E o que é isso que nos acontece? Acontecer? Passar? Larrosa sobre o conceito de experiência… Mas acredito que precisamos (me incluo) perceber, como Larrosa (2002) nos diz também, sobre a diferença entreinformação e experiência para continuar escrevendo nessas páginas… Diariamente se passam muitas coisas em nossas vidas, em nossas pesquisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece (LARROSA, p. 21, 2002). Tudo o que se passa, passa demasiadamente depressa, cada vez mais depressa (LARROSA, p. 23, 2002) e estamos cada vez mais informados, com mais informações:

 

A informação não é experiência. E mais, a informação não deixa lugar para a experiência, ela é quase o contrárioda experiência, quase uma antiexperiência. O sujeito da informação sabemuitas coisas, passa seu tempo buscando informação,o que mais o preocupa é não ter bastante informação;cada vez sabe mais, cada vez está melhor informado,porém, com essa obsessão pela informação e pelo saber(mas saber não no sentido de “sabedoria”, mas nosentido de “estar informado”), o que consegue é quenada lhe aconteça. (LARROSA, p. 21, 2002)

 

Entretanto, quando estamos disponíveis para o outro, penso com Larrosa (2002), quando paramos para sentir, osensível nos atravessa. Volto-me para minha pergunta…Algo sensível nos toca?Não é algo inteligível que se possa descrever, clinicamente analisar, mas penso que é algo que pulsa… E isso que pulsa? Como registrar? Como não deixar passar aquilo que me passa?

 

Para [pensar partiendo de laexperiencia] no basta con narrar los hechos: es necesario inventar para que una experiencia tome sentidos. En cambio, para “atenerse a loshechos” no es necesario inventar porque ellos nos vienen dados por los modelos aprobados de relación con el mundo, es decir, por los códigos simbólicos de que disponemos. (…) en ellenguaje es necesario inventar porque en laexperiencia a la que el recuerdo se refiere insistentemente, están presentes elementos que loslenguajes de que disponemoscancelan, descartan, evitan, para conservar laimagenya dada(ZAMBONI, p. 25-26, 2002)

 

Penso em minha pesquisa… Como registrar o encontro com o outro? Como narrar a experiência com o outro? Experiência… Conversando com Larrosa (2002), entendo que experiência não é aquilo que passa ou se passa. De acordo com o autor, a experiência é aquilo que nos passa, nos toca, nos atravessa.  Mas e registrar? Escrever? Diariar? Leila Domingues nos alerta que a escrita pode transformar o que vemos ou o que ouvimos em batalhas… “Ela transforma-se em um princípio de ação. Em contrapartida, aquele que escreve se transmuta em meio a esse emaranhado” (MACHADO, p. 149, 2004). Penso, junto com ela, na aposta metodológica deste diário: diariar: um verbo, uma ação, algo que se faz e que nos transforma.

Verbo, ação, diariar…Entretanto, como se vive esse verbo? Este diariar? Skliar nos diz que já nãobasta dizer que escrever é importante para o amanhã, que escrever serve para ofuturo, que escrever serve para o trabalho ou para a continuidade no estudo. “Escrevendo é no presente, nãono futuro. Escrever escrevendo, sim.” (SKLIAR, p. 19, 2016). Escrevendo, diariando, vivendo o presente, o que me atravessa agora, o que pulsa do encontro entre nós na escola.

O encontro entre nós na escola… Vivendo esse encontro e o diariando é o que me proponho no diário de monografia/pesquisa que está em composição. Conversando com Rosimeri Dias percebo que o diário escrito, na cartografia, pode ser uma possibilidade de transformação que acontece e cria novos sentidos e fazeres e de dizeres. Sentidos daquilo que estamos vivendo, expressando no dispositivo do diário ações do presente que nos atravessam.

 

Inventar e escrever uma constituição que nos passa e nos atravessa é distinto de contar o que já está dado e representa-lo caligraficamente. (…) Uma tessitura que opta por dar passagem aos fragmentos de diários das investigações que nos mostram, com efeito, a possibilidade de constituição de um devir texto. Um modo de escrever, de estudar, de trabalhar, de ler o que nos passa e o que se passa nesse entrelugar – formação e escola. (DIAS, p. 114, 2016)

 

Nesse entrelugar em que se atravessa minha pesquisa emergem questões entrenós… O que nos atravessa, escola, universidade, o coletivo de pesquisa… Diariando, escrevendo… Me faz pensar em mais uma questão… Como que estou registrando isso que se passa entrenós? Escrevendo, sim… Paro e olho para a tela do computador, para o diário em cima da mesa e vejo… Palavras. Constantemente, diariamente, escrevo palavras… Larrosa nos diz “creio no poder das palavras, na força das palavras, creio que fazemos coisas com as palavras e, também, que as palavras fazem coisas conosco”(LARROSA, p. 21, 2002). Me faz pensar… O que tenho feito com as palavras aqui no diário de monografia, na pesquisa? O que essas palavras todas têm feito comigo? Percebo que muito de mim tem aqui neste diário e que muito daqui tem em mim…

Leila Domingues Machado nos diz que a leitura nos percorre e não faz apenas parte de umalembrança, torna-se nosso próprio corpo. “É preciso que haja uma composição das consultas, das leituras e releituras, das escolhas,enfim, da vida, naquele que escreve e no que escreve” (MACHADO, p. 149, 2004).O que essa pesquisa tem feito comigo? Para a autora,

 

Trata-se deconectar fragmentos por meio da criação de um estilo de escrita. Eo corpo que aí se cria, não é um corpo de doutrina, é o própriocorpo daquele que ao ser percorrido pelas leituras se apossou delas efaz sua afirmativa. (…) A escrita como encontro com a alteridade, como umdesmanchar do Idêntico, a escrita como um ‘outramento’. Umaestranheza. (MACHADO, p. 149, 2004).

 

            Outramento, o outro, alteridade… Este diário não é meu, não se trata de mim, não se vive por mim… Se trata, se vive, se diária entre nós… Escrevendo estou, diariando estou em um dispositivo de expressão do que acontece no encontro entre mim e os sujeitos na escola…. Digo verdades aqui? Falo do outro aqui? Não pretendo isso… Escrevendo entrenós… “O texto diarista enuncia sua própriaprodução, liberando-se da pretensão do conhecimento definitivosobre o objeto” (BARROS E PASSOS, p. 175, 2009).

            Vivendo uma composição entre nós, mas como eu me coloco nesse entre? Como estou nesta pesquisa?Larrosae Rolnik, mesmo em conversas diferentes me fazem pensar em como estou nessa pesquisa.  Tudo (ou quase tudo) que me passa na escola, nessa pesquisa entre, eu me coloco a disposição para pensar, sentir, viver, escrever, diariar. “O cartógrafo é um verdadeiro antropófago: vive de expropriar, se apropriar, devorar e desovar, transvalorado” (ROLNIK, p. 2, 1989)Pensando, sentindo, vivendo, escrevendo, diariandoo presente… Tem sido um exercício diário, vivido… Como nos diz Larrosa,a experiência nos exige um gesto de interrupção:

 

parar para pensar, parar para olhar,parar para escutar, pensar mais devagar, olhar maisdevagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentirmais devagar, demorar-se nos detalhes, suspendera opinião, suspender o juízo, suspender a vontade,suspender o automatismo da ação, cultivar a atençãoe a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobreo que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aosoutros, cultivar a arte do encontro, calar muito, terpaciência e dar-se tempo e espaço. (LARROSA, p. 19, 2002)

 

Os encontros entre nós na escola, entre mim e minhas companheiras de Orientação Coletiva, entre mim e os textos de diferentes autores são o que mais me impulsam e diariar… As conversas pulsam em mim no presente e no presente estou as escrevendo, as diariando, as vivendo

 

Todas as entradas são boas, desde que as saídas sejam múltiplas. Por isso o cartógrafo serve-se de fontes as mais variadas, incluindo fontes não só escritas e nem só teóricas. Seus operadores conceituais podem surgir tanto de um filme quanto de uma conversa ou de um tratado de filosofia. (ROLNIK, p. 2, 1989)

 

No encontro com o outro, este diário tem sido composto… “Trata-se de um pedido da escrita do outro. Sem o outro, a escrita está despojada de alteridade. E despojada de alteridade não há escrita”(SKLIAR, p. 18, 2014). Nesse entrelugar (DIAS, p. 114, 2016), entrenós… Com o exercício contínuo de parar, olhar, escutar, disponibilizar-se…Escrevendo, diariandoo que acontece entre nós (LARROSA, p. 10, 2014), pois “Trata-se apenas de escrever o que nos acontece com nossas próprias palavras.”(SKLIAR, p. 18, 2014).

 

3. Diariando entre nós

 

Cursei a disciplina obrigatória de Educação Especial durante o quarto período da graduação. Em uma das aulas dessa disciplina, realizamos uma visita a Escola Municipal Paulo Freire (EMPF) para conhecer o Atendimento Educacional Especializado[4] (AEE) e os grupos bilíngues[5] (aulas em Libras, como primeira língua, com o aprendizado do Português, como segunda língua, para sujeitos surdos) de lá. Foi muito interessante conhecer grupo bilíngue e aprender um pouco sobre o cotidiano dessa realidade,pois o grupo bilíngue é uma proposta de turma diferente das que estava habituada a encontrar nas escolas regulares.

 

Estava aqui pensando…

A monografia que estou compondo é efeito de uma pesquisa cartográfica que se tece antes mesmo de me inscrever na disciplina Seminário de Monografia… Antes mesmo de ter uma orientadora, ter “escolhido” um tema.

Um gesto… Aquele gesto… Uma conversa… O encontro…

(Diário de pesquisa, 10 de maio de 2015)

 

No final da visita, eu tive a oportunidade de conversar com um rapaz com surdocegueira através de Libras tátil[6]. Esse momento não surgiu do nada, eu já esperava por ele antes de acontecer, minha mãeestava diretora da EMPF quando conversei com o esse rapaz. Eu havia visto o Paulo[7]várias vezes na escola enquanto fazia visitas a minha mãe lá. Nunca tinha tido coragem,digamos assim, de conversar com ele. Não por receio dele não querer conversar comigo, mas porque eu não imaginava como eu conseguiria me comunicar com ele.Tinha inúmeras dúvidas: Como iniciar uma conversa? Ele fala com a voz? Ele fala com sinais? Ele consegue me ver? Eu vou entender o que ele quer dizer? Será que consigo?

 

Naquele dia, no final da manhã, resolvi que iria conversar com ele. Pensei que juntos iríamos nos entender e fui! Falei com a professora de apoio[8] dele que queria conversar com ele e ela foi me ensinando:faz o sinal nas mãos dele e espera ele responder.

A professora me apresentou a ele, disse meu nome, meu sinal[9] e disse que eu era filha da diretora, falou também que eu queria conversar com ele. Ele repetiu meu nome, meu sinal e disse que eu era filha da diretora. Comecei então a falar com ele “Oi! Tudo bem?”e ele repetia o que eu falava. “Você estudou hoje? Você gosta de estudar?”e ele repetia os sinais que eu fazia… Depois de duas tentativas, ele me respondeu! Disse “Eu gosto de estudar muito!”e meus olhos brilharam. Fomos seguindo nossa conversa!

(Diário de pesquisa, 31 de maio de 2016)

 

Necessitamos, segundo Larrosa (2014, p. 71), de uma língua para a conversação… Não para o debate, discussão ou diálogo… Uma língua para resistir, para chamarmos de nossa… Converso com Larrosa e penso a experiência da conversa com Paulo… Seguimoscriando e conversando uma língua nossa, entre nós. Conversamos juntos.

A experiência dessa conversa me afetou…me fez pensar sobre a surdocegueira e sobre a educação especial.Segundo Skliar (2015, p. 27), não podemos estar juntos sem sermos afetados e afetarmos mutuamente. A conversa que tive com essa pessoa me despertou para outros olhares e me atravessou de tal forma que apenas uma pesquisa na internet não satisfez minha vontade de conhecer mais sobre o universo da surdocegueira. Busquei (e ainda busco) cursos, palestras, oficinas, textos, artigos e, talvez, o mais importante: mais conversas com o Paulo.

 

FRIO! Me parece que Paulo ama esse tempinho frio e com chuva… Como posso dizer que ele ama esse clima?

Hoje estava chovendo.

Cheguei na escola e cumprimentei todas as pessoas… Quando dei bom dia a Paulo a primeira coisa que ele disse, antes do meu sinal,foi “CHUVA! MUITA CHUVA”

(Eu fiquei surpresa, pois estava acostumada a receber um bom dia de volta, sucedido do meu sinal)

Eu digo “SIM!!! Muita chuva.”

Pergunto a ele se gosta da chuva e do frio e ele diz que sim, diz que gosta muito. Pergunto sobre o sol… Digo que o sol é bom. Ele diz que não! Não gosta de sol e de calor… Gosta mesmo é do frio.

Eu fiquei impressionada, pois foi a primeira vez que H. e eu conversamos sobre algo que não fosse escola ou como ele estava se sentindo naquele dia…Outra coisa que me deixou feliz: Ele puxou o assunto! Eu mesma nada falei para ele dizer algo… Paulo que quis conversar algo comigo!

(Diário de pesquisa, 06 de junho de 2016)

           

O inusitado! Algo que me capturou, me interrompeu, me deslocou… uma conversa com outro assunto, não o mesmo que sempre converso com H. Uma experiência. Penso, comCONTRERAS E PEREZ DE LARA(2010), que a experiência vem o que não é o inesperado, sem um plano ou ordem da qual pensamos que as coisas devam acontecer. A experiência é atravessada pelo improviso, pelo que pulsa… Algo que vivo.

 

Es experiencia precisamente porque irrumpe ante lo que era previsto, lo sabido; no puede estar sometida a control, ni ser producto de un plan. Por eso obliga a pensar, para ser acogida en su novedad, como lo que no encaja, o lo que necesita de un nuevo lenguaje, una nueva expresión, o un nuevo saber para dar cuenta de ella. Irrumpe también su significado, el sentido de lo vivido. (CONTRERAS E PEREZ DE LARA

 

 

……

 

REFERÊNCIAS

 

 

BARROS, L. P.; KASTRUP, V. Cartografar é acompanhar processos. Porto Alegre: Sulina, 2012, p. 52-75. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. (orgs.) Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2009.

 

BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação. Jan/Fev/Mar/Abr 2002 Nº 19.

 

______. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Política Nacional de Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva. Brasília: MEC/SEESP, 2008.

 

DIAS, R. O. (2012). Produção da vida nos territóriosescolares: entre universidade e escola básica. Psicologia & Sociedade, 24(n. spe.), 67-75.

 

______. Fragmentos de diário de campo, escrita e devir texto.In: CALLAI, Cristina; RIBETTO, Anelice (orgs.) Uma escrita acadêmica outra: ensaios, experiências e invenções. 1ª edição – Rio de Janeiro: Lamparia, 2016.

 

CONTRERAS, José Domingo; PEREZ DE LARA, Nuria. La experiencia y la investigación educativa. In: CONTRERAS, José Domingo; PEREZ DE LARA, Nuria.  (Comps.) Investigar la experiencia educativa. Madrid: Ediciones Morata, 2010.

 

MACHADO, L. D. O desafio ético da escrita. Psicologia&Sociedade; 16 (1): 146-150; Número Especial 2004.

 

ROLNIK, Suely.Cartografia Sentimental, Transformaçõescontemporâneas do desejo. Editora Estação Liberdade, São Paulo, 1989.

 

ORLANDI, Luiz B. L. O que estamos ajudando a fazer de nós mesmos?In: Margareth Ragp, Luiz B. L. Orlandi, Alfrerdo Veiga-Neto (Orgs.), Imagens de Foucault e Deleuze – ressonâncias nietzscheanas, RJ, DP&A Ed., 2002, pp. 217-238.

 

SKLIAR, Carlos. Incluir as diferenças? Sobre um problema mal formulado e uma realidade insuportável. Revista Interinstitucional Artes de Educar. Rio de Janeiro, V. 1 N. 1 – pag 13-28 (fev – mai 2015): “Artes de educar”.

 

______. Escrevendo e lendo sobre a identidade, adiferença e a solidão.Leitura: Teoria & Prática, Campinas, v.34, n.66, p.13-29, 2016.

 

ZAMBONI, Chiara. Inventar, agradecer: pensar. In: Diotima, El perfume de la maestra. Enlos laboratórios de la vida cotidiana. Barcelona, Icaria, 2002.

 

 


[1] Professora de Apoio Educacional Especializado da Rede Municipalde Niterói. Estudante de Pedagogia da FFP-UERJ. Bolsista de IC-CNPQ. Membro do Coletivo “Diferenças e Alteridade na Educação”.

[2] Professora da Faculdade de Formação de Professores da UERJ. Membro do Coletivo “Diferenças e Alteridade na Educação”.

[3]O Pibid(Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência) é uma iniciativa para o aperfeiçoamento e a valorização da formação de professores para a educação básica. O programa concede bolsas a alunos de licenciatura participantes de projetos de iniciação à docência desenvolvidos por Instituições de Educação Superior (IES) em parceria com escolas de educação básica da rede pública de ensino.Os projetos devem promover a inserção dos estudantes no contexto das escolas públicas desde o início da sua formação acadêmica para que desenvolvam atividades didático-pedagógicas sob orientação de um docente da licenciatura e de um professor da escola. Fonte: http://www.capes.gov.br/educacao-basica/capespibid/pibid

[4]O atendimento educacional especializado (AEE) identifica, elabora e organiza recursos pedagógicos e de acessibilidade que eliminem as barreiras para a plena participação dos alunos, considerando as suas necessidades específicas, segundo a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (2008).

[5]Segundo a Carta Regimento das Unidades Públicas Municipais de Educação de Niterói (2015),as turmas bilíngues, de 1º e 2º ciclos do Ensino Fundamental, são turmas que tem um professor regente bilíngue e são acompanhadas por professor de Libras que tem a função de ensinar Libras para alunos e profissionais da Unidade de Educação.

[6]Segundo o documento do MEC, Educação infantil: saberes e práticas da inclusão: dificuldades de comunicação e sinalização: surdocegueira/múltipla deficiência sensorial(2006), língua de sinais tátil que corresponde a um sistema não- alfabético, caracterizada pela realização dos sinais nas mãos da criança, tem por objetivo viabilizar a compreensão integral da informação pelo sujeito.

[7]Uso um nome fictício para preservar a identidade do aluno.

[8]Conforme a Carta Regimento das Unidades Públicas Municipais de Educação de Niterói, o professor de apoio planeja e realiza aulas, mesmo na ausência do aluno com deficiência, trabalhando com os alunos os conhecimentos propostos no projeto pedagógico, de acordo com asdiretrizes curriculares em vigor e atua em conjunto com o professor regente, visando atender ao aluno com deficiência no desempenho das atividades de vida diária.

[9]Nas interações entre sujeitos surdos ou mesmo entre surdos e ouvintes existem algumas características interessantes. O sinal pessoal é atribuído somente pelos surdos, como se fosse um batismo. Não necessariamente o seu sinal pessoal está relacionado com a primeira letra do seu nome. Disponível em <http://www.posugf.com.br/noticias/todas/1591-a-surdez-e-a-lingua-brasileira-de-sinais> Acessado em 14 de junho de 2016.

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