EXPERIÊNCIA E NARRATIVA EM EDUCAÇÃO

EXPERIÊNCIA E NARRATIVA EM EDUCAÇÃO

 

Anelice Ribetto [1]

Valter Filé [2]

Resumo:

Este ensaio pretende sugerir algumas pistas que nos ajudem com os desafios que enfrentamos em educação – na formação de professores -, a partir de diferentes dimensões da narrativa, movimentando alguns conceitos e pontos de força. Queremos oferecer um exercício de pensamento em fragmentos que,  embora ressoem juntos,  não necessariamente devem ser lidos e considerados numa literalidade linear… Fragmentos que ajudem a perguntar(mo-nos) sobre como produzirmos desde alguns conceitos, idéias, noções que circundam as narrativas: memória, experiência, tempo, identidade narrativa, entre outros.  E nos perguntar: Como outras  tramas  podem ser vívidas (e vividas) para os sujeitos da educação?

Palavras chave: memória narrativa, experiência, educação

EXPERIENCE AND NARRATIVE IN EDUCATION

Abstract:

This essay tempt to suggest some clues concerning challenges we face in our lifes (as narratives) in education. That’s why we bring some keys with the intension of questioning concepts, starting points and thoughts; Analizing narrative fragments that need to be considered as diverse; even when they seem to be the same… Narrative fragments that help to ask questions about how we produce – from the concepts circulating on narratives- memory, experience, time, weft, configuration, reconfiguration, narrative identity among others; new wefts that could be lived for the actors of education? 

Key Words: narrative memory, experience, educação  

Narrar é guerrilha contra o esquecimento

e a conivencia com ele;

se a morte não existisse,

talvez ninguem relataría nada.

(Claudio Magris, Microcosmos)

 

Começar um texto… narrar.

Começar um texto que entrelace a educação e a identidade (experiência) narrativa… narrar.

Narrar a educação. Narrar na educação.

Talvez, pensar a educação como a arte de ouvir e contar histórias, ou ainda, a arte de en-tramar histórias. “Uma arte que se joga na criação autoral de nossas vidas como narrativas” (Filé 2010). Pensar, talvez, que a educação é algo que tem a ver com a atenção às condições dramáticas que compõem os acontecimentos das nossas vidas, que guiam as histórias que contamos. Criar e recriar outras possibilidades de narra-las, de reconta-las, de nos re-inventarmo-nos a cada dia. E, dessa forma, talvez nossos investimentos possam desviar-se e tornarem-se distintas de práticas educativas baseadas em processos que pretendem a banalização do cotidiano vivido pelos sujeitos da educação para a memorização de informações desconectadas, obedientes apenas a planos e processos que soam como relatos aleatórios, desvinculados e esvaziados de tensão dramática, tanto para estudantes quanto para professores. Tais práticas funcionam como atividade predatória da capacidade narrativa de cada um o que implica na degradação das possibilidades de invenções, criações simbólicas e materiais, de invenções e criações de outras maneiras de nos relacionarmos com o mundo, de nos relacionarmos com outros, de nos relacionarmos conosco mesmos.

Talvez valesse a pena considerar que o processo de nos pensarmos narrativamente, de trabalharmos as tramas dos entrecruzamentos das diferentes narrativas a que estamos expostos – ou, ainda,  das que supomos não termos nada com ela – para atuarmos no sentido inverso dessas práticas pedagógicas que funcionam como controles do que se diz e das vozes que podem dizer, pois, como diria Foucault,

Em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade (2002: 9)

 Sendo assim, talvez não exista, em tais práticas, a possibilidade de “entramar” histórias. Ou de configurar essas tramas com aquilo que nos passa – no sentido que Larrosa dá à palavra experiência  como sujeitos – criando o cotidiano da educação –  e não só conformarmos com estar atentos aquilo que passa, sem que nos passe nada. Ou seja, de tecer possibilidades de linkar os acontecimentos da vida dos sujeitos da educação com outros acontecimentos que cruzam-se ou confrontam-se com aquilo que se pretende importante para uma suposta formação. E construir os sentidos da nossa experiência (narrativa) formativa.

Narrativas – desafios de validade

Escolhemos começar pelo que achamos uma dificuldade: a consideração da narrativa no universo acadêmico, principalmente quando estamos sob regimes de pensamento que aspiram encontrar a verdade essencial das coisas, o real do mundo… É como se os que se envolvem em trabalhos com narrativas ou com os estudos dos relatos fossem habitantes de um lugar um tanto desacreditado e que pode pouco, pois, quando se pretende ter certeza dos acontecimentos se recorre à História e não às confusões da memória de indivíduos, de grupos movidos por interesses que os fazem deturpar o que se passou.

A narrativa não é só vista com, no mínimo, pouca paciência pela academia. Ela também é considerada insuficiente quando trata-se da validade de um testemunho: a historiografia chega em busca não apenas das marcas dos corpos ou dos relatos dos sobreviventes, mas de documentos, pois tais relatos não bastam, não são críveis ou não se quer escutar, como nos diz Primo Levy (1988).

Nesse começo, nessa abertura, vamos apenas tocar no ponto que nos parece importante para a empreitada da escrita desse texto. O enfrentamento de hierarquização da narrativa – em face de sua “imprecisão” – pela suposta verdade objetiva da História. A narrativa é quase sempre considerada a partir das suas possibilidades de invenção, criação, portanto, vinculada à ficção, ou pelo menos, ao que não se pode confiar como verdade objetiva. Portanto, invenção e criação são elementos que supostamente estariam somente do lado da literatura e das narrativas individuais ou de determinados grupos. Porém, Gagnebin (2009) nos lembra algumas questões que frequentam às discussões da historiografia contemporânea: seu caráter literário, até mesmo ficcional e a questão do historiador – seu grupo de origem, de seus pares, de sua nação – em particular os liames que a construção da memória histórica mantém com o esquecimento e a denegação. Portanto, prossegue Gagnebin “o historiador que toma consciencia do caráter literário, até mesmo retórico, narrativo de sua empresa, não corre o risco de apagar definitivamente a estreita fronteira que separa a história das histórias, o discurso científico da ficção, ou ainda a verdade da mentira? (Gagnebin 2009:41)

Benjamin, em “Sobre o conceito da história”diz:  “articular historicamente o passado não significa conhece-lo tal como ele propriamente foi. Significa apoderar-se de uma lembrança tal como ela cintila num momento de perigo”( Benjamin 1994:224). Aqui Benjamin já investe contra a tentação da ciência, da historiografia burguesa de dominar o passado e apresenta-lo como “a verdade”, “a realidade” definitiva,  de vender esse passado e usá-lo na tentativa da imobilização do presente.

Num breve ensaio chamado “El poeta y su imposible testimonio”, publicado em 2006, Ricardo Foerster escreve nessa relação tensa e intensa entre palavra, verdade, silêncios e memória, oferecendo um olhar sobre a palavra narrada que não se rende aos cartórios que pululam nas fronteiras das disciplinas acadêmicas… narrativas testemunhais que invadem e estouram limites. Foerster pergunta: “Pode se abordar o testemunho da testemunha desde algum valor de certeza, de seguridade, ou, inclusive, de conhecimento? A fala da testemunha é da ordem da verdade?” (2006:79). Enquanto aquilo que é da ordem da verdade e do conhecimento demanda confirmação, a narrativa, as palavras ditas pelo testemunho conservam sua fragilidade.

O Conhecimento (a História) necessita da prova que não pode ser contraditória ou ambígua. O testemunho… ao dar-se em palavras, não pode  nem quer desfazer-se dos seus próprios limites e também daquilo que ao se dizer volta-se sobre si mesmo subtraindo-se ao mandato de quem o diz. “A palavra da testemunha tem uma dívida com as passagens secretas e obscuras da memória”, diz Foerster (ibid:82). Assim, existe sempre uma tentativa feroz de estabelecer como verdade aquilo inominável e colocá-lo em outra dimensão, pois supõe trasladá-lo a outra lógica na qual a estabilidade, a certeza, a verdade, a prova, constituem fundamentos básicos, eixos desde os quais o testemunho deverá ser lido e interpretado. Desta forma, “ao se tornar dado, prova rigorosa, material de pesquisa e confrontação, a palavra testemunhante se transforma em outra coisa e perde seu estatuto como tal” (ibid:83)

Benjamin, Foerster e tantos mais nos ajudam a pensar que não é só sobre a verdade dos fatos que estamos tentando tratar. Não é apenas sobre uma suposta objetividade que daria privilégio de se fazer hierarquizações no mundo. Parece-nos que o que está em jogo nesta discussão entre a historicidade e a narrativa são as capacidades, as potencialidades das duas, primeiro, de colocarem em pauta aquilo que está sendo ameaçado e, em seguida, gerar a capacidade de empreender dinâmicas que possibilitem o surgimento de novos cenários, de novos autores, novos narradores, consequentemente, novas possibilidades de trabalharmos o passado em favor de um presente vivo.

Paul Ricoeur também enfrenta estas questões dizendo que a história é sempre, simultaneamente, narrativa – as histórias enumeráveis que a compõem e o processo real como sequencia de ações humanas, em particular  que a história como disciplina remete sempre às dimensões humanas da ação e da linguagem e, sobretudo, da narração. E nos alerta de que se somos ainda incapazes de nos livrarmos das armadilhas de uma definição pobre de verdade, “é que nós ratificamos de maneira não crítica um determinado conceito de verdade, definição pela adequação a um real dos objetos e submetido ao critério da verificação e da falasificação empíricos”(apud Gagnebin, op. cit.: 42).

Na sua obra Tempo e Narrativa (2010), Ricouer vai deburçar-se nesse limiar entre história e ficção. Para compreender melhor as conexões entre narrativa histórica e narrativa ficcional o autor nos propõe dois conceitos: o de configuração, que seriam as operações narrativas elaboradas no interior mesmo da linguagem e o de refiguração, que se encarregaria de dar conta da transformação da experiência viva sob o efeito da narração. Narração que é entendida como possibilidade de lidarmos com as experiências organizando-as temporalmente, enfrentando a finitude da nossa existência. Num primeiro momento estabelecemos a configuração, a trama da narrativa, ou seja, a forma de colocar em palavras – que envolve um ato de criação, de invenção – como possibilidade de rememorar a experiência. E, também, as maiores diferenças entre narrativa histórica e narrativa de ficção, segundo Ricoeur, estão na refiguração, ou seja, na forma como cada sujeito lida com aquilo que ouvê/lê a partir da sua experiência temporal. Ricouer trabalha com um conceito que parece-nos muito caro para esta nossa empreitada: o conceito de identidade narrativa (que é aprofundado em Si mesmo como outro, 1990). “O que chamamos de identidade narrativa, tanto dos indivíduos como das comunidades históricas?”, pergunta o autor. “Não seria o produto instável do entrecruzamento entre história e ficção?” (apud Gagnebin, op.cit:173). Poderíamos pensar na possiblidade de História e relatos, narrativas ficções serem pensadas em suas possibilidades de conexão nos sujeitos. Ambas consideradas, não pela verdade que exibe, mas pela possibilidade de produzir efeitos nos que leem/ouvem.

Deslocando essa produção conceitual para o campo da educação diríamos, talvez, que é como empregamos os movimentos de refiguração (e, posteriormente, de configuração) como dinâmicas de trabalharmos sobre os entrecruzamentos e as implicações das diferentes narrativas (ficcionais, históricas, relatos) para a nossa formação. Seria a possibilidade do sujeito  – neste jogo – fazer a inscrição da sua narrativa (os acontecimentos da sua vida) numa história social e cultural mais ampla.

Para esta empreitada vamos tentar algumas escaramuças sobre a questão de como a narrativa relaciona-se com a experiência.

Narrativas… experiências

Nesses últimos anos o interesse por tratar de narrativas, narratividade, histórias de vida (ou histórias da vida de uma pessoa) aparecem no campo da educação e em outros campos das ciências humanas e sociais. Nem sempre, porem, encontramos possibilidades de conexão entre os diferentes usos que se faz daquilo que temos chamado de narrativa (ou relatos). Poucos são os estudos que saem da perspectiva do uso das memórias e das experiências dos sujeitos para ilustração de outras produções, para confirmação daquilo que já se sabia antes. Aqui pretendemos nos dedicar às implicações da memória, da experiência, do tempo.

Ricouer afirma que o tempo torna-se tempo humano na medida em que é articulado de um modo narrativo. Em compensação, a narrativa é significativa na medida em que esboça os traços da experiência temporal, obviamente,  de quem narra e de quem ouve. O narrador, segundo Benjamin (op.cit), toma o que narra da experiência que ele mesmo viveu ou da experiência que lhe foi transmitida. Porém, por sua vez, há narração no momento em que esta experiência volta a ser transmitida. Se a experiência não fosse comunicável, se não fosse transmissível, a narração não seria possível. Porem, adverte Benjamin, esta experiência do narrado se torna, por sua vez, em experiencia para quem escuta, para o ouvinte. Aquele que escuta vive outra vez a experiência. E, neste sentido, poderíamos dizer que o ouvinte (o leitor) é capaz de recordar o que não viveu, a experiência que não experimentou, porem que lhe foi transmitida pelo relato.

Entendemos que a educação está vinculada aos encontros… encontros que são “ passionais, vividos como reconhecimento da estranheza em comum, o que não permite ao estudante e ao professor falar do outro sem se falar…” (Gutiérrez 2006:167). Desde o ponto de vista da narração, a ação educativa pode ser pensada como envolvimentos com experiencias. O estudante é capaz de viver a experiencia que lhe foi transmitida. Na ação educativa “narrada” se dá o exercício de configuração-refiguração (Ricoeur 2010), ou seja, o movimento em que professores e estudantes buscam a conexão das diferentes narrativas com as histórias individuais que passam a se inscrever num contexto mais amplo, em suas tensões.

Não pretendemos que esses conceitos se transformem rapidamente em mais um modelo didático-pedagógico a ser absorvido. Pretendemos, apenas, expandir as possibilidades de pensamento e que essa abertura nos ajude a melhor entender a formação dos nossos estudantes (como se chega a ser o que se é… como diria Nietzche). Assim, acreditamos que talvez  seja importante recuperar não só os conceitos que resoam com o de narrativa, mas as dificuldades que estas resonancias sugerem.

Benjamin (1994) adverte que se a narrativa se alimenta da experiência, a degradação de uma leva, inexoravelmente, ao declínio da outra. Assim acusa, por exemplo, as mídias modernas e o fluxo massacrante de informações. Informações que, segundo o autor, nos torna mais pobres de experiência. A quantidade gigantesca de informações desertificantes nos levam, segundo o autor, a uma profunda pobreza da experiência. A diferença da informação em relação à narração é que em toda a informação é necessária a constante verificabilidade. Ademais de poder verificar-se objetivamente, a informação deve ser sempre fresca e resultar efêmera. Uma informação antiga e perene deixa de ser interessante. Ao passo que as boas histórias atravessam muitas gerações.

Ao olhar nossas práticas pedagógicas, perguntamos se não estariam estas tomadas de informações que só cobram dos estudantes a retenção de “defuntos”, de coisas mortas que não conseguem se implicar com a vida destes? Neste ponto queremos acentuar duas questões, supondo que alguns de nós já trabalhamos com narrativas como ponto de articulação das nossas práticas pedagógicas, de nossas pesquisas: Será que o que chamamos de narrativa, de relatos não estão sendo, primeiro, negligenciados em sua condição de trama de organização da experiência no tempo, como possibilidade de reconfiguração do tempo humano? Será que estas narrativas não estão sendo tratadas apenas como informação literal, ou, será que não estamos exigindo delas o que exigimos da informação – que nos digam a verdade – para serem transformadas em dados e exemplos empíricos – que nos ofereçam um terreno seguro para que possamos, a partir daí, fundar nossas enunciações (que sempre se fazem sobre terrenos arenosos, pântanos, etc)?

De que precisa o trabalho com narrativas? Acreditamos que a primeira questão está no ouvido, principalmente, na identificação de uma boa história. Benjamin alerta para o trabalho (e a dificuldade) da escuta. A verdadeira escuta não depende de uma sala silenciosa e com boa acústica, apenas. É de outra ordem. Significa um esquecimento de si para prestar atenção a o outro, ao outro. A escuta carece de um vazio, uma desistência temporária da própria identidade que deve converter-se em fidelidade consigo mesmo. “Quanto mais esquecido de si mesmo, mais profundamente se impregna sua memória do ouvido”, escreve Benjamin (1998:18). Mas o ouvido não se engana com qualquer história…

Uma história que não se ergue da experiência, como exigência da memória, como um trabalho que envolve uma trama que organiza um acontecimento não chega ao ouvido, não toca, não com-move. Isso acontece quando vamos nos encontrar com os sujeitos das nossas pesquisas que devem responder a perguntas que se prestam mais a organizar o que queremos do que criar condições para que a memória, as experiências vividas por nossos interlocutores nos levem por lugares insondáveis, que nos ajudem a organizarmo-nos no tempo. Muitas das vezes as entrevistas trabalham em favor de uma organização, de um controle para não corrermos o  risco de ouvirmos o que não queremos ouvir, dos relatos nos levarem para mundos que não conhecemos e nem controlamos, desorientando aquilo que já sabíamos de antemão. O controle da entrevista, nesta perspectiva, sugere aos nossos entrevistados que eles devem concentrarem-se para adivinhar aquilo que queremos saber. Ficam à merce do que queremos, esquecendo-se de suas histórias, relegando suas experiências ao que não teria valor.

 Então, escutar, estar atentos, no sentido Banjaminiano nos coloca irredutivelmente numa relação de alteridade aonde podemos sentir coisas que não queremos sentir, escutar coisas que não pretendíamos escutar, pensar coisas que não pensávamos, ir por caminhos que não tínhamos planejado. E,  aquilo que nos chega como alteridade, aquilo que tem a ver com o inesperado, que se apresenta de improviso, sem obedecer um plano, aquilo que chega e interrompe nossa escuta tranquila…aquilo é a experiência… a carne da narrativa… a vida feita relato daquilo que nos passa, daquilo que se padece, no sentido da paixão… Nesse sentido,  experiência se vive mas nem sempre pode-se expressar.

Nuria Perez de Lara e José Contreras Dominguez, em um texto recentemente publicado chamado “Investigar la Experiencia” (2010), tratam demoradamente dos movimentos produzidos por um grupo de autores interessados na educação como experiência. Os autores dizem que trabalhar com a experiência requer estar à escuta, à espera… saber que nem sempre a experiência deixa-se pensar bem, deixa-se decifrar, não existindo modo de saturar os seus sentidos e sabendo que  a pergunta pelo sentido da experiência é também uma pergunta pelo sem-sentido (Perez de Lara y Contreras 2010:36) .

Experiências e narrativas.

De que modo podemos tentar nos aproximar às experiências e aos sentidos das experiências na educação? Do que se trata não é só de produzir pesquisas, estudos, escritas sobre os relatos dos outros, sobre as narrativas dos outros. Se assim fosse poderíamos “estar considerando os relatos das pessoas apenas como dados que tratamos, analisamos, categorizamos e convertemos em objetos de conhecimento” (Perez de Lara e Contreras, op.cit, p.81) se trata de estar disponíveis para o encontro com o outro.

Nesse sentido, talvez uma boa aposta tem sido vivida pelo cineasta Eduardo Coutinho. Sua disposição de ouvir o outro. Trabalha sobre a linha tênue entre verdade e ficção, e sobretudo, naquilo que chamou de “negociação dos desejos” (Filé 2000) que é a tensão vivida na hora do encontro dos dois lados da câmera.

Tensão… atenção… disponibilidade para o encontro com o outro…como diz Fernando Grochtengarten (2009) os filmes de Coutinho “escancaram o caráter de discurso que os documentários “sociológicos” se esforçavam por ocultar. Sobretudo porque seus filmes não falam de fora, mas de dentro da relação do cineasta com os personagens que retrata” (p.2)

Vamos lá…

Tensão… atenção… disponibilidade:  o cinema de Eduardo Coutinho

                                    Uma pessoa que fala, que constrói seu imaginário diante da câmera

é tão emocionante quanto Rambo voar.

Efeito especial, para mim é isto, entende?

Eduardo Coutinho

 João Moreira Salles[3], no prefácio do livro de Consuelo Lins (2004:7), usa uma citação de Paul Ricoeur para dizer de que se trata a obra de Coutinho: “Onde há poder há fragilidade. E onde há fragilidade, há responsabilidade. Eu diria mesmo que o objeto da responsabilidade é o frágil, o perecível que nos solicita. Porque o frágil está, de algum modo, confiado à nossa guarda. Entregue ao nosso cuidado”. E, mais adiante, continua Salles, tratando da fragilidade do singular: “(…) esse conjunto de singularidades encontrará abrigo no cinema de Coutinho (…) Por ser único, o singular é sempre frágil. Sobre ele pesa a constante ameaça de desaparecimento perante a violência das generalizações” (p.9). E ainda Salles: “face a face com seu personagem, Coutinho vai construindo uma história a dois – a voz e o ouvido comandando em partes iguais a narrativa – cujo desfecho não há como conhecer de antemão” (Ibid: 8).

Eduardo Coutinho tornou-se um clássico do cinema de documentário brasileiro. Seus filmes[4] oferecem para nós pesquisadores das ciências humanas (principalmente os que estamos em busca de compreender melhor o mundo, mais do que  querer registrar em cartório algumas verdades, alguns produtos vendáveis). várias dimensões da narrativa ou das pesquisas que fazemos e que dependem de outros seres humanos. Ajuda a pensar sobre a relação com o outro no encontro – a escuta; a diferença entre entrevista e conversa; a diferença entre alguém que tenta falar o que se supõe que o outro quer ouvir e alguém que conta suas experiências mais viscerais, que conta as tragédias e outras passagens da vida com maestria; o respeito ao que o outro tem para dizer (respeito e não subserviencia! Sem subestimar ou superestimar, pois ambas são formas de desprezo. Tampouco querer encontrar ou simular uma igualdade onde há diferença, alteridade) [5], o estar vazio (ou seria aquela qualidade da escuta de que, acionando Benjamin e Ricoeur?), mas nunca neutro nem idealizando, entre tantas outras coisas.

Num de seus filmes – “Boca de Lixo” (1993) ele nos oferece algumas situações bastante complexas e que vale a pena serem citadas aqui.

O diretor chega no lixão de Itaocara, São Gonçalo, região periférica da cidade do Rio de Janeiro. Tenta contato[6] com os catadores de lixo e é rechaçado. As pessoas se negam a dar entrevista. Já sabem o que quer aquela gente da mídia, ou seja, confirmar a degradação de suas vidas, confundi-los com os porcos e os urubus que dividem aquilo que chega nos caminhões de lixo. Coutinho não foge nem esconde esta situação de desconforto. Agrega ao filme as dificuldades de encontrar uma negociação possível para fazer um documentário sobre aquela gente, e consegue. Chama a atenção o fato do diretor, num segundo momento (como uma espécie de fio condutor) usar fotografias dos catadores e mostra-las. Os catadores identificam outros catadores e dizem seus nomes, riem, fazem piadas. A partir daí eles começam a serem identificados pelo nome. Podemos achar que isso é pouco ou óbvio, alguém ser identificado pelo nome. Porém, basta assistirmos a uma simples reportagem jornalística na tv para percebermos que as pessoas, principalmente das periferias, são sempre “populares”, “moradores”, “invasores”, “desabrigados”. Pessoas sem rosto. São apenas a fala que confirma o que a emissora quer mostrar/confirmar. Generalização! “Boca de Lixo”, neste caso, chama a atenção pelo que poderia ser óvio já que naturalizamos que o nome deve ser usado apenas para aqueles que são importantes, ou seja, os especialistas, aqueles que vão traduzir o que supostamente queriam dizer os “sem nome”. Assim, a partir do nome aqueles que eram simplesmente “catadores de lixo” viram potencialmente especialistas de suas vidas, de suas histórias., seres humanos. Eles encarnam politicamente desde a própria singularidade e subjetividade as experiências que serão narradas.

Mas, além dessa supostava obviedade acachapante, a de que seres humanos têm nome, o documentário nos provoca ainda mais. Num determinado momento o diretor solta uma pergunta que nos parece importante de ser recuperada. Naquele cenário caótico e que dele supostamente já podemos deduzir quase tudo, principalmente que ali é o pior lugar do mundo, o diretor pergunta: “Aqui é bom ou ruim?” Que pergunta grotesca, cínica ou cruel é essa? O que será que ele quer com a pergunta? Será que ele não vê onde está? Tudo isso e mais alguma coisa pode estar em jogo. Mas o que ele simplesmente acredita que alguma coisa poder ser dita além daquilo que nós já sabemos de antemão (que um lixão é ruim). Uma das pessoas dá uma resposta que a nosso ver foi muito significativa do ponto de vista da abertura da situação para um contexto mais geral e, concomitantemente, ratificando a crença do diretor nos sujeitos do filme. Diz mais ou menos assim a resposta: “Trabalhar em casa de família é pior do que trabalhar no lixo”…

Assim, Eduardo Coutinho vai trabalhado cada vez mais para desintoxicar-se de algumas asfixias dos documentários mais clássicos: a tipificação dos sujeitos e das suas condições de ilustradores daquilo que o documentarista/pesquisador já sabe. Assim, o sujeito não tem importância em si mesmo, por aquilo que ele nos oferece de singular, por aquilo que pode nos desequilibrar, desequilibrando algumas verdades. O outro só vale como peça que vai ser encaixada para se criar uma sequência discursiva de uma idéia que já estava antes do documentário começar (e eu diria, num paralelo com muitas pesquisas, “falas” que nos ajudam a dizer o que já queríamos dizer antes mesmo de começarmos a pesquisa). Fala que já se sabia muito antes do encontro…

O diretor tem apostado suas fichas na palavra do outro, que se não vem não pode ter filme. Mas tem radicalizado. No filme “O fim e o princípio” (2005, chega a uma cidade do sertão da Paraíba e sem uma produção prévia aposta na possibilidade de ver o que pode acontecer. Sai em busca de histórias que possam dar um filme.

 A anti-roteirização absoluta é a premissa do documentário que se inicia, nas palavras do realizador, “a partir do zero”. Sem nenhum tipo de pesquisa prévia, a equipe se dirige ao sertão paraibano em busca de uma comunidade rural que a aceite – ao mesmo tempo em que se explicita a necessidade de a equipe também gostar dos personagens. Percebe-se, assim, que a contingência do real é, neste filme, elevada à condição estrutural. O próprio realizador reconhece, de saída, o risco que o projeto representa. Por isso, admite mesmo a possibilidade de o documentário tornar-se metalingüístico, tematizando o próprio processo de busca. (Comolli 2008:8)

 Não tem tema, nem seleção prévia dos “entrevistados”, não conhece a cidade, mas tem um dispositivo, que já está na maioria dos seus filmes: o princípio da incerteza. Tatear no escuro em busca de pessoas que possam lhe oferecer boas histórias, que lhes conte suas vidas. Confiar que ainda possam existir pessoas que possam dar suas palavras. E o que Coutinho oferece? Sua escuta.

Mas já não seria pouco se Eduardo Coutinho buscasse apenas boas histórias e que seu processo de produção já nos ajudasse a pensar outras questões teórico-metodológicas de nossos afazeres acadêmicos. Histórias que ele faz questão de mostrar na tela com as marcas dos cortes, muitas das vezes abruptos, sem audios ambientes que atravessam de uma cena para a outra fingindo uma contiguidade (continuídade), tentando disfarçar as intervenções do diretor. O que ele faz é afirmar que está ali conversando com as pessoas e que é dele a opção do que entra, como entra e quando entra.

Conversando com as pessoas.

Coutinho gosta dizer que seus documentários não são compostos por entrevistas, mas por conversas

 A maioria dos que fazem documentários fazem, efetivamente, entrevistas. As entrevistas têm um lado jornalístico e de depoimento. Entrevistas e depoimentos são coisas para a História. São coisas que se fazem com especialistas.E eu trabalho com pessoas comuns. A pessoa conta um fato histórico e, se ele é verdadeiro ou não, deixa de ter importância. As conversas são conversas porque falo com pessoas anônimas – ninguém é anônimo, mas enfim… – elas falam a partir da vida privada…( Frochtengarten 2009:5)

 Então, a pergunta com a qual finalizamos o titulo anterior volta potente: De que modo podemos tentar nos aproximar às experiências e aos sentidos das experiências na educação? E sem ter respostas de cunho didático e metodológico, talvez, possamos pensar na conversa como dispositivo potente de aproximação e estranhamento. A conversa entra no universo da singularidade e da intimidade. O universo da experiência. Conversar.

Em um dos epílogos belíssimo[7], Larrosa se refere a este verbo também como uma arte, como uma arte difícil de exercitar “nunca se sabe aonde uma conversa pode levar… uma conversa não é algo que se faça, mas algo no que se entra… e, ao entrar nela, pode-se ir aonde não havia sido previsto… e essa é a maravilha da conversa… que nela, pode-se chegar a dizer o que não queria dizer, o que não sabia dizer, o que não podia dizer” (2003:212)

Alem do encontro de alteridade que se produz quando se entra na conversa, Coutinho nos faz pensar em outra dimensão caríssima a quem trabalha com narrativas: a tênue linha entre a ficção e a realidade. No filme “Jogo de cena” (2007) Coutinho explora de forma bastante instigante estes limites. Estabelece um jogo de encenações no qual mulheres contam acontecimentos de suas vidas. O filme estabelece um sentimento de confusão no espectador. Ouve-se duas histórias iguais contadas por mulheres diferentes. A primeira questão é que não sabemos se aquela pessoa realmente viveu aquilo que ela está contando. A coisa se torna mais complexa, pois algumas das mulheres são atrizes famosas (Marília Pera, Fernanda Torres e Andreia Beltrão) e isso nos dá a sensação de que elas estão contando a história de outra mulher. Acontece que entre as demais mulheres que participam das gravações existem outras atrizes não tão conhecidas. Quando sabemos (e muitos sabem pelo que leem, normalmente depois do filme) a dúvida se amplia. Quem será que viveu cada história? Será que alguem viveu realmente cada história? E talvez, continuemos a nos perguntar: Por que estamos procurando ter certeza, saber o que é mentira e o que é verdade? Qual é a pertinência dessa dúvida? Acreditamos que Ricoeur nos ajuda a pensar nesse assunto, quando, acima, trata da objetividade (da verdade representacional) da história e da ficção e seu caráter não confiável de invenção, de criação). O próprio Coutinho arrisca “fora isso a memória é, para mim, a coisa mais mentirosa do mundo. O que não quer dizer que não seja verdadeira” (in: Frochtengarten, p.5) Talvez pudéssemos acrescentar com um dito de Michel de Certeau (1994) quando ele confronta o relato (e tudo o que ele envolve de desconfiança quando ele é investigado na sua qualidade de ser verdade) e a descrição (e a sua tentativa de adequar-se o mais possível ao real). O autor diz que a qualidade do relato está, não na verdade que exibe (e, no caso do filme, na tranquilidade de controlarmos as coisas, as autorias e, claro, a relação entre autor, história e a sua verdade correspondente), mas nos efeitos que produz em nós. O que conta é a potencia de cada narrativa em nós. E quanto a correspondência entre o autor e a história, será que estes elementos não fazem parte de controle da economia escriturística, como nos diz Foucault (op.cit), citado no inicio deste artigo? Não seria esse “descontrole” propiciado por estes jogos de cena uma possiblidade de subvertermos, mesmo que temporáriamente, essa economia escriturística e seus controles? Se for assim, as narrativas não seriam sempre invenções de histórias reais? E mais, as histórias não pertencem a quem conta, mesmo que se trate da experiência vivida pelo narrador. A narrativa existe para ser compartilhada. Ela é a forma como singularmente se conta algo que aconteceu no mundo.

 (…)

Uma vez, no nosso Grupo de pesquisas[8], solicitamos como atividade inicial dos membros do grupo que escrevessem um relato de suas vidas, dos acontecimentos que os acompanharam até chegarem à universidade. Eram relatos singulares, mas que, em sua maioria, abriam-se para engancharem-se com outros relatos, com a própria história oficial do Brasil, com as relações raciais e as diferentes conexões culturais. Porem, naquele momento não conseguimos ultrapassar as emoções que geraram algumas das histórias. Hoje, talvez fosse possível, como desdobramento desta atividade, propormos a re-elaboração dos relatos a partir das “leituras” de outras histórias, como possibilidade de dar sentidos as narrativas anteriores, propondo novos relatos, propondo novas tramas que implicassem aqueles sujeitos e os diferentes acontecimentos, as diferentes narrativas do mundo – as narrativas coletivas – que passariam e implicar com as narrativas individuais. Poderíamos, quem sabe, trabalhar a capacidade de escuta das diferentes narrativas, de ampliar as possibilidades de contarmos as nossas histórias.

Pensar o sentido da narratividade, do desenvolvimento da escuta, da consideração da experiência, da com-posição do relato como trama da narrativa como conhecimento encarnado e pensar a partir de algumas condições da narrativa. Uma delas, a partir dos estudos dos testemunhos do holocausto, é a condição da narrativa como continuidade, como um trabalho da memória. A esse respeito, nos diz  Ricardo Foerster:

 a memória no judaismo não significa a exaltação de um passado exemplar senão a presença seletiva do impostergável, ontem, hoje e amanhã. [uma] Continuidade não no sentido escatológico, como cumprimento inexorável de um destino ou de uma promessa, continuidade, sim, como expressão do frágil, daquilo que se pode perder, exercicio da rememoração que salva no presente aquilo que de nenhum modo tem sua garantia de permanencia, nem no tempo nem na recordação dos homens. Neste sentido, o propriamente judeu da memória se relaciona com o ameaçado, com o que permanece em estado de intenpérie e que a história dos vencedores – como dizia Benjamin – desloca para o escquecimento (p.9)

O mesmo poderíamos dizer da tragédia da escravidão na história da humanidade e mais especificamente a escravidão negra na América. Como trabalharmos com aquilo que a memória e a História querem esquecer?

Assim, o que cabe ao que escuta é uma alteração da identidade como alguma coisa fixada desde um modelo que pretende a repetição do mesmo para uma identidade narrativa.

A identidade narrativa é abertura para a alteridade radical. É ficar ferido pelo desconhecido, pelo inesperado, é deixar livre a dimensão de extrangeiridade, é afirmar que o outro jamais fica preso pelo mesmo. E é através do narrável do relato que a identidade se forma (se educa) na recordação, na memória, na experiência. Como nos diz Ricoeur, a história de uma vida é refigurada constantemente por todas as histórias verídicas ou de ficção que um sujeito conta sobre si mesmo. Esta refiguração faz da própria vida um tecido de histórias narradas.

 


 

Referencias Bibliográficas.

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[1] 

* Professora Adjuntos da Faculdade de Formação de Professores da UERJ e do Mestrado em Educação, Processos Formativos e Desigualdades Sociais da UERJ/FFP. Contato: anelatina@gmail.com

[2] ** Professor adjunto do Departamento de Educação e Sociedade e do Programa de Pós-graduação em Educação Contextos Contemporâneos e Demandas Populares: valterfile@gmail.com

[3] Cineasta e parceiro de Coutinho em algumas produções.

[4] sobre a sua filmografia ver em http://pt.wikipedia.org/wiki/Eduardo_Coutinho;

[5] Coutinho diz: “Eu não me visto de farrapos para falar com mendigos, eu não finjo que sou nordestino prá falar com nordestinos” (Filé 2000:74).

[6]ele sempre chega com a câmera ligada. O imprevisível faz parte daquilo que pretende o seu trabalho.

[7] Epílogo do livro de Carlos Skliar (2003) Pedagogia (improvável) da diferença. E se o outro não estivesse aí?. DP&A: Rio de Janeiro, Brasil


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